2009/12/08

Muralha em preto-e-branco

Amanhecia e os primeiros raios de sol já começavam a entrar pelas cortinas abertas. Algum tempo depois, o som das ruas finalmente acordaram o Diretor. Ele tentou se sentar, mas naquele dia em especial sentia o peso do próprio corpo o prendendo na cama. O Diretor não queria trabalhar.

Foi preciso um esforço homérico por parte dele para pelo menos se sentar. Ele olhou pela janela do quarto andar, esperando ver os terrenos verdes e o som dos pássaros, tão comuns em sua infância, mas que agora foram substituídos pelo barulho dos carros em alta velocidade, as buzinas e os filhos da puta nas lojas gritando merda ao microfone. O Diretor fez uma careta e se preparou para mais um dia de trabalho. Antes de sair do apartamento, parou na sacada, como fazia todas as manhãs. Olhou para o céu nublado e sentiu um pouco de tristeza ao não ver nenhum pássaro voando.

- Em algum lugar dessa cidade, alguém neste momento está cometendo um crime. Mais cedo ou mais tarde, essa pessoa cruzará meu caminho – pensou.

Meia hora se passou entre descer até a garagem do prédio, entrar em seu carro e se dirigir para o trabalho. Naquele dia, o Diretor sentiu um estranho prazer ao perceber que havia escapado do trânsito louco da cidade. Nem as muralhas que cruzava todo dia lhe sufocaram. Ele precisou apenas parar o automóvel e buzinar. Em poucos segundos, o grande portão se abriu e ele entrou.

O Diretor estacionou na mesma vaga de sempre e entrou no pequeno prédio da administração. Ele sabia que aquele dia seria como todos os outros e foi direto para sua sala. Encontrou a secretária e ordenou:

- Não quero ser incomodado por algum tempo.

Ela aquiesceu. O Diretor se sentou em sua cadeira, apoiou os cotovelos na mesa, com as mãos no rosto. Na verdade, não queria ser diretor. Desde que fora ordenado como autoridade máxima daquele presídio, sentiu sua liberdade se reduzir ao mesmo nível dos presos por quem era responsável. O emprego lhe reprimia, as grades lhe reprimiam, os muros imponentes lhe reprimiam. Queria na verdade ser poeta. Sempre gostara da pureza dos versos, da liberdade das cadências e da multiplicidade das estrofes. Certo dia, acordou entusiasmado e correu em busca de papel e caneta, onde rabiscou: "meu coração por ti bate como calda de chocolate". Leu e recitou algumas vezes, sorriu com satisfação, vendo que escrevera algo incrível, e foi trabalhar assobiando.

Na verdade, o Diretor acreditava que a atmosfera do Presídio fez com que sua própria criatividade o deixasse, sussurrando os mais bonitos versos que eram seus por direito nos ouvidos de outra pessoa sem o menor talento ou mesmo merecimento para tão avançada forma de poesia. Preso nesse círculo de pensamentos, o Diretor demorou a perceber o Sampaio batendo na porta.

Sampaio era seu braço direito, o homem mais confiável daquele lugar. O Diretor tentou avisar Sampaio que aquele não era lugar bom pra trabalhar, que ele merecia coisa melhor, mas ao contrário de si mesmo, o Sampaio parecia ter sido feito para a coisa. Era uma amizade improvável a que eles cultivavam. Improvável, mas verdadeira.

Também foi graças ao Sampaio que o Diretor proclamou aquela que por muito tempo foi considerada sua melhor rima. Estavam os dois em uma festa de fim de ano do trabalho, junto com outros agentes carcerários e funcionários do presídio. O Diretor naquele momento era o centro das atenções, pois disputava com o amigo o prêmio mais cobiçado da noite: Campeão Interno de Truco. Após algumas rodadas de extrema má sorte, o Diretor conseguiu uma mão boa. Ao contrário do Sampaio, não tinha manilha alguma, mas conseguiu virar o placar de 22x21 e vencer com um grito caloroso:

- Alô Sampaio! Canto Flor e saio!

E agora estavam os dois ali, frente a frente na mesma sala. O Diretor demorou para perceber o semblante de preocupação do amigo, mas ele só precisou de poucas palavras para atualizar a situação:

- Aconteceu de novo.

Um calafrio percorreu o Diretor. Em poucos momentos, os dois cruzavam juntos os corredores mal iluminados até entrarem no pátio de recreação. Naquela hora, muitos detentos estariam ali desfrutando algumas horas de sol, mas, nesse dia em especial, um incidente os privou de tal dádiva.

O Diretor se aproximou de uma escada de madeira, que um policial havia usado para subir até o telhado e neste momento descia carregando uma carga curiosa. O Diretor apanhou o objeto com as mão suadas.

Não era a primeira vez que aquilo acontecia. O presídio ficava dentro da área urbana da cidade. Era comum que pessoas passassem por lá e atirassem pacotes para dentro da instituição, mas esses pacotes geralmente eram drogas, celulares, até mesmo cachaça. Uma rede de proteção foi colocada na tentativa de diminuir os arremessos, mas sua eficácia diminuía dia após dia. Uma vez, em uma revista de rotina, acharam até mesmo um livro didático perfurado, que era usado para esconder maconha, mas nada daquele jeito.

O Diretor olhou para o objeto arremessado. Tratava-se dos dois volumes de O vermelho e o negro, de Stendhal. Os livros eram antigos e grandes, daqueles pesados e de capa grossa. O Diretor rompeu a corda que prendia os exemplares juntos com um canivete que sempre guardava no bolso por precaução. Abriu e foleou os livros, mas não encontrou a droga.

Encaminhou-os para a perícia, apreensivo. Não sabia do que se tratava. Seria um código secreto? Estariam os detentos planejando algum tipo de rebelião? Ou trariam os livros uma droga nova, que nem a polícia conhecia? O pior é que não havia nenhuma pista de para quem pudesse se destinar a encomenda. O Diretor sabia, entretanto, que os detentos possuiam seu código de honra, que jamais trairiam uns aos outros, muito menos delatariam um companheiro.

Muitas horas se passaram. O Sampaio entrou novamente na sala ao encontro do Diretor. Trazia embaixo do braço os livros. Soltou-os com vontade na mesa, anunciando que a perícia nada tinha encontrado. Não havia drogas nos livros. O Diretor pegou os volumes, caminhou até um armário no canto da sala e abriu. Dentro dele haviam livros de grandes mestres da literatura universal, como Goethe, William Shakespeare, Machado de Assis, Franz Kafka, Douglas Addams e outros. Todos encontrados em situações parecidas. O Diretor olhou para o Sampaio e o amigo entendeu a expressão de quem pede por uma luz, uma peça do quebra-cabeça:

- As vezes eu me pergunto – disse o Sampaio – e se for só alguém que quer ler essas coisas?

Um estalo atingiu a cabeça do Diretor. Em um instante, todas as dúvidas se dissiparam, toda a paranoia se foi. E se fosse isso, apenas isso? Um detento aproveitando seu tempo livre para se aprofundar na cultura erudita? Era improvável, realmente, mas não impossível.

O Diretor nutriu essa ideia pelo resto do dia. Nunca descobriria quem era o preso ilustre, mas sentia um estranho alívio. Ele não estava mais sozinho, pois dentro daquelas muralhas em preto-e-branco, não era o único a aspirar à liberdade. Quando o expediente acabou, entrou no carro e saiu. Após passar pelo portão, parou o carro e desceu. Olhou para as muralhas que lhe causavam tanta opressão e sentiu-as menores. Respirou fundo algumas vezes e voltou para o carro. Uma vez em casa, foi dormir tranquilo e entusiasmado. Um novo dia de trabalho o aguardava.

Um comentário:

Tuam disse...

Forma
Linda, Linda, Linda,
De se sugerir

Esperança.

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