2006/12/28

Contos jvk de praia: O neoliberal e a quiromante

(uma história verídica)

Depois de uma noite parte cansativa e parte relaxante, Geison sentou-se na rede e começou a tocar seu violão. As nuvens desapareciam no céu do meio dia (passado) e o sol ameaçava aparecer. Sempre chovia quando iamos para a praia, mas a onipresente Bola Amarela Desgraçada sempre dava um jeitinho de aparecer com um sorriso amarelo (uma bola amarela tem sorriso amarelo, sacaram?) um dia antes de irmos embora, prometendo mais e mais dias de sol para aqueles que ficassem.

No outro lado da quadra, caminhava uma senhora de aparência peculiar. Vestia roupas típicas de cores claras, que cobriam todo o seu corpo moreno, de aspecto envelhecido, baixa estatura e considerável largura. Ainda não era tão anciã quanto se tornaria a partir daquele dia, mas pode-se dizer de fato que era uma cigana. Trazia nos braços redes para vender e ao lado um filho com uma... bem, não vamos estragar a surpresa. O tal filho é adulto e não tem participação ativa na história. Nem sabemos se é filho mesmo, podia ser o marido, o amante, o pai, sei lá. Não convém se meter na vida alheia.

O fato é que a cigana perambulou pela vizinhança oferecendo seu produto artesanal para deus e o mundo. Ninguém comprou, provavelmente, e ela finalmente chegou em nossa casa. Geison olhou para a figura decrépida, que com ele conversava num portuñol ainda mais depreciativo. Sem saco para aguentar aquela vendedora ambulante, Geison fez o óbvio: chamou Cassiano. Nosso neoliberal de plantão naquele momento devia estar em um de seus intermináveis banhos de produtos de beleza (no quarto dele haviam 10, mais a vaselina que escondemos junto) ou na cozinha, chorando as mágoas de ter seu queijo especial ultra-caro alimentado Herege, o cão sem fé nem lei.

Cassiano respondeu ao chamado do amigo em pouco tempo. Não precisou perguntar para saber o motivo de sua invocação: ignorou Geison e caminhou rapidamente em direção à cigana, que o recepcionou com palavras exóticas que traduzimos diretamente do portuñol:

- Não gostaria de comprar uma rede?
- Não minha senhora – respondeu Cassiano, em um espanhol tão perfeito que as espanholas que vêm da Espanha se derreteriam por ele (e que também traduzimos).
- Então deixa eu ler tua mão! – respondeu a cigana, segurando com força a mão de Cassiano.
- Ao invés disso, gostaria que a senhora me contasse como vão as coisas com os clãs de ciganos na Espanha. – No original, Cassiano citou os nomes dos clãs, mas eu não lembro.
- Mas deixa eu ler tua mão!
- Está bem! Eu deixarei! Mas saiba de antemão que não acredito nisso!

Cassiano estendeu a mão em direção à cigana, que prontamente a segurou. Passou o dedo nas linhas da mão do neoliberal, exclamando ocasionais "oh" e "ah" de vez em quando. Depois de uma rápida análise, disse com um tom misterioso:

- Eu vejo que você é uma pessoa que passou por muitas dificuldades, mas superou elas. Você vai ser uma pessoa feliz, mas mesmo assim terá tristezas no seu futuro.
Os olhos de Cassiano se encheram de, digamos, sensações. Ele olhou para a cigana e disse:
- Mas cigana, isso é óbvio! Eu não preciso que ninguém leia minha mão para saber dessas coisas! Tu é uma falsa cigana que faz isso só pra conseguir dinheiro das pessoas!

A cigana se assustou e ameaçou dar um passo pra trás, mas estava atônita. Cassiano, ainda em espanhol, enfiou a mão no bolso e de lá tirou algumas moedas. Agora foi a sua vez de puxar a mão da cigana, para nela colocar o dinheiro. Continuou:

- Sabe cigana, se tu queria o meu dinheiro, não precisava ficar inventando histórinhas pra me enganar. Tá aqui ele ó. Era só pedir!

Nesse momento, a cigana realmente se assustou. Seus olhos se esbugalharam e ela começou a falar coisas sem nexo, em alguma língua que não era mais português, espanhol, o falso portuñol ou mesmo esperanto, que não tem nada a ver com a história. Cassiano ameaçou a cigana com frases no estilo "nem teu espanhol presta!" e ela por sua vez jurou que ia mandá-lo para o inferno. Então correu pelo meio da rua, enquanto Cassiano erguia as mãos ara o céu e recitava em voz alta suas rezas exóticas que aprendeu lendo alguma versão metrossexual do Corão. A pobre cigana, em prantos, atravessou a rua e se refugiou em uma belíssima camionete vermelha, onde estava seu parente anteriormente mencionado. Cassiano a perseguiu durante esse trajeto, rindo e recitando entusiasmado suas rezas. O carro partiu logo depois, levando consigo uma mulher que ganhou alguns anos a menos de vida num encontro de cinco minutos e deixando para nós um orgulhoso neoliberal, que voltava de sua batalha verbal com um sorriso triunfante. Enquanto isso, no resto da casa, todos nós já haviamos sido invocados para assistir a cena teatral de Cassiano, que então nos contou com pormenores a narrativa acima.

Nunca mais veríamos a cigana, embora suas ações pudessem ser sentidas em determinados momentos de nossas vidas, como da vez em que eu fui no Zaffari Vergueiro e vi uma cigana numa camionete igual à da praia, talvez caçando nosso amigo laranja, sem saber que hoje em dia ele mora em Curitiba. A presença dela também foi sugerida em determinadas oportunidades, como em nossa estadia no Fórum Social Mundial. Ainda assim, o maior pesar dessa história toda é do próprio Cassiano: "Cara, se eu tivesse lembrado, certo que dançava o haka no meio da rua!".

Nenhum comentário:

Twitter

    follow me on Twitter
    Este blog aprecia opiniões diversas e propostas de debate. Não se acanhe e deixe um comentário!