2006/12/25

Reencontro - um conto do Fórum Social Mundial

Nas sombras das árvores caminhavam as pessoas dispostas a escapar do angustiado sol do meio dia, que nos atingia com todo o seu fulgor, por mais que ainda fosse cedo da manhã.

A sombra onipresente do interior das barracas escuras revelava-se uma severa armadilha para os campistas, pois todo o calor do dia tornava aquele ambiente mortal para uma longa estádia. Mesmo assim, esse ambiente fez-se perfeito para que eu entendesse a situação dos personagens de Incidente em Antares e Vidas secas. Particularmente, eu sentia inveja das testemunhas do coreto dos mortos, já que eles tinham à sua disposição dois caminhões de refrigerantes.

A barraca em que estávamos havia sido emprestada por Gonzalo. Exibia diferentes tonalidades de verde e alguns tons pastéis, levemente mimetizando as cores do exército. Possuía uma divisória interna opcional para separar as quatro pessoas que abrigava confortavelmente. Nós cinco acordávamos em horários diferentes. O primeiro sempre era Zeh, que sumia logo em seguida, para somente retornar no meio da tarde, limpo e almoçado.

Eu não figurava entre os primeiros a abrirem os olhos, mesmo assim me levantava a tempo de ver Jerônimo babando, grunhindo e debatendo-se (sendo esse um dos prováveis motivos que levara Zeh a acordar cedo, visto que ambos dormiam lado a lado). Naquela manhã, os campistas do Parque Harmonia viram-se envoltos com uma intrigante personagem. A cigana, vestindo roupas típicas de cores claras, que cobriam todo o seu corpo moreno, de aspecto envelhecido, baixa estatura e considerável largura passou pela nossa barraca no exato momento em que Cassiano (nosso neoliberal de plantão) saia para realizar sua rotina matinal, que consistia em uma caminhada pela área do acampamento e paradas para escovar os dentes, pentear os cabelos e realizar seu banho de produtos de beleza diário.

Ignorante de seu destino, a cigana olhou para aquele jovem singular e disse, com a voz firme de quem realmente acreditava ser capaz de realizar as façanhas que propunha:

- Meu filho, quer que eu leia sua sorte?

É verdade que a visão de um Cassiano recém acordado despertou na cigana alguma vaga lembrança ruim, mas a situação e os poucos trocados que ela conseguira (roubando meninos de rua) anteriormente a levaram a sequer cogitar aquela remota possibilidade, mas o mesmo não ocorrera com Cassiano, já que as palavras da cigana atravessaram seus ouvidos como um feixe de luz iluminando um pequeno canto escuro de suas memórias. Parou por um tempo, mantendo a cabeça baixa, enquanto tudo o que lhe restava de sono sumiu gradativamente de seu corpo. Ergueu lentamente a cabeça, ao mesmo tempo em que mantinha um sorriso sarcástico no rosto. Enfim, mirou os olhos da cigana com um olhar afiado e bradou alto, como se quisesse que todo o acampamento (ou pelo menos João Pedro e eu) ouvisse:

- Espera ai cigana! Eu te conheço!

Assustada, a cigana deu alguns passos para trás, atônita. Suava frio, e seu olhar mostrava claramente que ela não estava mais ali, e sim perdida em algum lugar do passado. Por fim, apontou para Cassiano, gaguejando:

- Filho do demo, tu de novo infeliz, há de arder no fogo do inferno, criatura!

Cassiano riu, desprezando a infeliz senhora. Por fim, pôs-se em posição e entoou as palavras que precediam a cerimônia do Haka:

- Ingu paki ha!

Mas era tarde, a cigana já havia fugido, morta de medo, para nunca mais ser vista no Fórum Social Mundial, sem que ambos soubessem que seus caminhos haveriam de se cruzar novamente um dia.

Meta: Outro texto antigo, da época do Fórum de 2003 (põe antigo nisso!). O entendimento completo desse texto depende de um conto jvk de praia.

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